quinta-feira, novembro 14, 2013

204. POEMAS QUOTIDIANOS - Crítica de João Gaspar Simões

[Poesia]

Estreou-se em 1957 com o livro Poemas Quotidianos, a que em 1960 juntaria uma segunda colecção de poesias, Novos Poemas Quotidianos, o autor agora incluído na colecção «Poetas de Hoje», com um novo livro, igualmente intitulado de Poemas Quotidianos. Um novo livro? Não. Os Poemas Quotidianos, agora seleccionados para representarem o poeta no consagrado areópago, recapitulam todo o quotidianismo de António Reis, que assim se chama o lírico revelado pela extinta publicação portuense Notícias do Bloqueio. Não estamos, de facto, perante um livro novo. Os Poemas Quotidianos reúnem cem poesias do poeta nortenho – nasceu em Vila Nova de Gaia e conta pouco mais de quarenta anos –,  tantas quantas, de certo modo, constituem o recheio dos seus dois livros anteriores. Se há neste algumas poesias novas e se nem todas as antigas foram nele recolhidas, substancialmente os Poemas Quotidianos de hoje são os Poemas Quotidianos de ontem, ou seja, o lirismo dos vinte anos de mais um poeta juvenil.

Conquanto desdenhada pelo mais aguerridos fundibulários da nova poesia, que são, ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, paladinos da nova crítica, a minha velha crítica orgulha-se de ter consagrado em 1957 e em 1960 artigos de franco aplauso ao autor dos Poemas Quotidianos. Depois de mim, depois do que eu disse da frescura, simplicidade e quotidianismo dos versos deste admirável poeta, é que os organizadores da segunda edição da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa o incluíram no seu forilégio. E, facto mais importante ainda para as efemérides festivas que de longe em longe assinalam a publicação desta crónica: o próprio António Reis, quer no seu livro de 60 quer no seu livro de 67, quis, com algumas palavras gratas, consagrar a pouquidade da acção da minha crítica, pelo menos nos poetas do seu tempo.

Que ele me perdoe a indiscrição. Há vaidades que se desculpam, creio eu, e esta é desculpável, uma vez que parte de alguém que não costuma praticar esse tão generalizado desporto entre os homens de letras nacionais. Na dedicatória dos seus Novos Poemas Quotidianos escreveu António Reis em 60: «para fulano… que sempre teve a grandeza de não nos deixar ser fáceis, mas sempre nos deixou ser simples»; e na dos seus Poemas Quotidianos, agora dados à estampa: «Para…, que num momento de poesia programática e declamatória soube estar atento e levar-nos à meditação sem apontar caminhos ou limitar inquietações…»

Como vêem, o galardão envaidece, por partir de um poeta que nega aquilo que não poucos afirmam: o dogmatismo da minha crítica. Poderá haver mais consoladora recompensa para quem, depois de quase trinta anos a arrumar a casa da poesia portuguesa, se recusa a desarrumá-la, admitindo de ânimo leve todos os «nossos» que a nova poesia lhe impinge?

Antecede a colectânea dos Poemas Quotidianos, de António Reis, agora editados, um longo estudo de Eduardo Prado Coelho. «A Poesia de António Reis», se intitula o referido ensaio – que de um autêntico ensaio se trata – e, perante ele, perante a sua facúndia, apetece evocar o imortal épico e com ele exclamar: «Cessem do sábio Grego e do Troiano…». Depois de tão penetrante, de tão exaustiva, de tão «nova» crítica, que há-de dizer «a velha», isto é, a minha? Consinta-se-nos, porém, uma pergunta: aguentará o simples, quotidiano, comovedor lirismo de António Reis o impacte de uma análise tão proficientemente crítica? Não será prejudicial à leitura dos Poemas Quotidianos um exame tão pouco quotidiano da sua estrutura e génese poética? É assim a crítica de hoje, sobretudo a crítica como esta de inspiração francesa. Das seis ou sete citações no texto do referido estudo, cinco pelo menos são de autores gauleses, e algumas delas, a maior parte, senão de filósofos ou filosofantes, de sociólogos ou sociologistas. Não falta lá sequer Gaston Bachelard, espécie de sacerdote da nova crítica, e Sartre, o Sartre que escreveu um ensaio sobre Baudelaire que nada tem que ver com a poesia de Baudelaire, o qual confessa que se há alguma coisa a que ele seja visceralmente estranho é à poesia… Ora a verdade é esta: que a crítica francesa empenhada em estudar a poesia e os poetas é, geralmente, a menos recomendada para modelo de crítica poética, sobretudo nos nossos dias, em que a poesia em França desceu às mais baixas temperaturas líricas, em grande parte mercê das altas temperaturas científicas a que a sua crítica subiu.

Não há sombra de ironia nas nossas palavras. Reconhecemos em Eduardo Prado Coelho uma das mais prometedoras organizações intelectuais dos nossos tempos. Apenas nos perguntamos: estará ele fadado para compreender os poetas? Poderá um instrumento crítico tão complicado como o seu apreender os movimentos simples de um estro confessamente quotidiano como sucede com António Reis? Evidentemente que a poesia deste lírico não é tão simples como parece. Aliás, as poucas frases que escreveu nas duas dedicatórias por mim indiscretamente transcritas comprovam que há simplicidades que o não são, simplicidades. Daí, porém, até dizer-se  que entre os «pontos fulcrais» que distinguem a sua poesia do neo-realismo se contam: «inexistência dum tempo dialéctico numa plenitude dinâmica e criadora», «inexistência duma dimensão qualitativamente nova do futuro», «ambiguidade não resolvida da relação com os objectos», isto é, coisas que já nos surpreendem que existam no neo-realismo e que nos fazem cair das nuvens quando pensamos que porventura poderiam ter existido na poesia de tão translúcido poeta, daí, desse desbobinador de toda uma fita filosofantemente proficiente – projectada num écran onde as coisas se passam com uma simplicidade aliciante, franca francamente vai uma grande distância!

Pois acerca de um poeta que escreve versos tão condensadamente simples como estes:

Constante
mudar de flores
o nosso amor

sem água às vezes
gestos

contando o dinheiro
passajando a roupa
a dúvida

em silêncio

ou abrindo
a boca

perguntar-se um crítico, como pergunta o autor da «Poesia de António Reis», «como irá reagir o leitor perante estes poemas?», preocupado com a dantesca visão do mundo do poeta, mundo que ele considera «horrível», é substituir, em verdade, o acto despreconceituoso que a leitura dos Poemas Quotidianos requer por um acto preconceituoso que se pretende que seja o acto de leitura de poeta tão comovedoramente simples. Se andássemos com uma candeia à procura de um exemplar desse género de crítica a que nos referimos algures, essa crítica que se tem por portadora do facho redentor do criticismo impressionista, ultrapassado, dos tempos de outrora (como se antes desta crítica pseudocientífica não tivesse havido a crítica pseudocientífica de Taine ou Brunetière, como se não tivesse havido o neocriticismo, como se os métodos psicanalíticos e psicocríticos, a descrição existencial ou fenomenológica, a análise estruturalista e marxista não se tivessem digladiado já entre si), não teríamos encontrado melhor. O certo é que tão existencial, tão técnica, tão estrutural, esta crítica é – que se aplicaria por igual a António Reis e a Alberto de Serpa, a Saul Dias e a Eugénio de Andrade, isto é, a todos os poetas de ontem e de hoje que, como o autor dos Poemas Quotidianos, se exprimem a respeito da vida e do amor, dos hábitos e das coisas, dos gestos e das preocupações materiais, do tempo que passa e do tempo que faz, da morte que paira e da velhice que espreita, da ternura que se esconde e da sensualidade que freme, cristalizando momentos que de outra maneira se desagregariam no inconsciente perpassar dos dias.

Com efeito, os Poemas Quotidianos inscrevem-se numa tradição a que a própria Presença é menos estranha do que Eduardo Prado Coelho supõe. Primeiro, porque nem toda a poesia presencista é discursiva – pelo contrário, foi ela a primeira a deixar de o ser nalguns dos seus poetas mais genuinamente líricos, não dramáticos, que dramáticos são Régio ou Torga –,  e se há um antepassado lírico de António Reis, esse seu antepassado é o presencista Saul Dias, o autor de … mais e mais …, de Ainda, de Sangue, a respeito do qual poderiam dizer-se ipsis verbis as mesmas coisas que a crítica sociofilosófica diz de António Reis. Mas são iguais? Não; são diferentes, tão diferentes quanto um homem o pode ser e é de outro homem, tão diferentes quanto um poeta o é e deve ser de outro poeta. Eis, precisamente, o que esse género de crítica não toma em conta. Para ela não há individualidades em poesia ou em literatura: há casos colectivos, fenómenos sociológicos. Nem só na poesia de António Reis se joga «a dignidade e o sentido duma existência»: isso joga-se na poesia de todos os verdadeiros poetas. E o quotidiano em que se debate o seu lirismo é o quotidiano em que a poesia portuguesa vem debatendo-se, desde o tempo de Alberto de Serpa, que, com o seu Lisboa é Longe, nos deu um lamiré desse quotidianismo portuense que em Poemas Quotidianos atinge agora a cristalização ideal, isto é, esse ser simples, sem contudo ser fácil, que é a nota mais pessoal do lirismo de António Reis.

João Gaspar Simões

Jornal Diário de Notícias, de 2 de Março de 1967.
in João Gaspar Simões – “Crítica II – Poetas contemporâneos 1960 – 1980”, tomo III, p. 149-153, INCM, Lisboa, 1999.