segunda-feira, setembro 13, 2004

021. "ANA" no Festival de Cinema da Figueira da Foz - 1982

O TEMA DO FILME

Naqueles dias...
A lenda do leite na casa sombria.
Tempo interior.
Quase silêncio.
Luz. A natureza como imemorial casa exterior.
Inverno.
O sangue recolhido nas duas mãos, mãe Ana.

As emoções da infância que nascem de novo, sob outras formas, com outros rostos, outras.
O trabalho intenso para que as transmutações surjam e permaneçam na obra inteira e já independente de nós

António Reis
Margarida Cordeiro

OPINIÃO

A singeleza do título do filme de António Reis e Margarida Cordeiro pode ajudar a perceber, por um desses paradoxos em que Trás-os-Montes já era fértil, o infinito (de desejo) que nele se joga: Ana, ou a simetria do nome, quer dizer, o eterno regresso do nome a si próprio, fendido por uma superfície imaginária - espelho e água - que o produz ou que, pelo menos, nele se instala para produzir sentido(s).
Nomear, eis a questão. Sabemos que muito do que em cinema se diz em termos de modernidade passa pelo questionamento da palavra como efeito de nomeação e sua inserção na cadeia de materiais de que cada filme se tece. O trajecto exemplar de António Reis e Margarida Cordeiro é, evidentemente, cúmplice de tal questionamento, mas apenas se o entendermos como interior a tudo o que é ou pode ser material de filme.
Neste sentido, o seu cinema poderá ser definido, antes do mais, como uma corrente tenaz de interrogação do efeito de nomeação, onde quer que ele se manifeste. Ana, justamente, simetria de origem, mãe e terra, utopia e horizonte, memória e futuro. Cada simetria gera as condições da sua própria dissolução selvagem como se cada ser, cada objecto - cada coisa nomeada - só realizasse o seu destino (de significação)numa perdição irreversível (de que o cinema seria, precisamente, o registo ambíguo). São coisas enigmáticas, é bem certo, mas ao mesmo tempo, Ana consegue devolvê-las com a transparência estranha (inomeável, sem dúvida) do que sempre lá esteve. Guardemo-nos, porém, da facilidade de querer ver no filme um simples requiem, mais ou menos ecológico, pregando o regresso à natureza. O cinema de António Reis e Margarida Cordeiro chegou aum ponto vital (e, seguramente, único não só no cinema em Portugal mas também a nível internacional) em que categorias como «natureza» e «civilização», «rural» e «urbano» estão condenadas a perder a sua pertinência estética. Resta apenas o saber, esse excesso que nem sempre escreve a história dos homens. Este cinema sabe, quer dizer, Ana é um filme que conquistou integralmente, pelos seus próprios meios, o tempo e os espaço em que nos convoca.

João Lopes - Ficha de "Ana", 11.º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, 9-19 de Setembro de 1982.