terça-feira, janeiro 24, 2006

133. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Jorge Listopad

[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]

Atrás dos "Trás-os-Montes"

O filme português «Trás-os-Montes», de que todos dizem maravilhas e poucos querem vê-las, encerra, já por isso, um equívoco ou um problema. Se os intelectuais e os artistas, ao dizerem maravilhas têm razão, o público é burro, cego e mouco. Se o público não é burro, nem cego nem mouco, os intelectuais ou se enganam ou exageram. Haverá uma terceira via? Talvez haja.
É bom não esquecer que o realizador António Reis, é o autor de «Poemas Quotidianos», essa poesia excepcional, de lirismo estenográfico.
É bom não esquecer ainda que António Reis foi assistente de um outro filme também sobre Trás-os-Montes, de que, porém, nem todos disseram maravilhas, embora sempre poucos quisessem vê-las, o «Auto da Primavera», de Manuel de Oliveira, que soube, pela imagem rigorosa, dar ao folclore ritual a dimensão épica.
Se o actual filme de António Reis fosse, na verdade, «polémico», como ele próprio adverte na sua introdução falada enquanto o écrã está escuro (sintomático: as palavras invisíveis sobre a imagem ausente), o seu polemis, a sua guerra, seria a guerra civil dos discursos interiores. Esses, porém - nunca claramente enunciados, numa mistura que não é osmose, num desejo preconcebido de que a imagem sempre se deva ultrapassar a si própria - põe-nos perante uma miscelânea obviamente não conceptual, feita do discurso lírico visível (do poeta), do discurso épico esboçado (do antropólogo dos ritos, do sociológico), e do discurso dramático (da mise-en-scène teatral), e que, aliás, constitui os momentos mais frágeis, uma vez que se sente a sua mitologia artificial, como que intrusa no mundo de António Reis.
Os que admiram «Trás-os-Montes», ou se identificam com um dos discursos presentes, ou não concebem o que, afinal, sabe qualquer espectador médio, pela intuição: que o cinema é uma linguagem, isto é, um discurso imaginado.
Fundir os vários discursos num, como aconteceu às vezes, por exemplo, nos filmes de Pasolini, de antropologia bárbara, sincrónica e diacrónica, é uma aposta difícil. Tal aposta, sem dúvida, honra o cinema português: concretizando o que chamou «Trás-os-Montes», António Reis (e Margarida) aproximou-se do seu futuro filme, até tecnicamente mais acabado. e que terá público.
Eis a minha aposta.

Jorge Listopad

Jornal Expresso, Revista, pág. 22, de 25 de Junho de 1976 (secção "Alternativas", coordenação de Helena Vaz da Silva)