quarta-feira, setembro 15, 2004

024. "ROSA DE AREIA" antestreia na Cinemateca - Out. 1989

FLOR DO DESERTO NASCE NO ASFALTO DE LISBOA

Após os 90 minutos de projecção na sala da Cinemateca, tudo o que se disser sobre «Rosa de Areia» soa a tagarelice. Quando o silêncio fala assim, só resta calar. Tal como está construído (e destruído, no ritmo dialéctico que é a sua respiração) o filme impõe-se como um dogma da santíssima trindade. Talvez por isso ouviu-se na sala da Cinemateca, por duas vezes, a palavra «religioso». Claro: é religioso o que religa todos os contrários e antinomias, a palavra ioga até serve melhor para expressar isso. Agora no sentido confessional e apostólico de qualquer credo – é caso para dizer, credo, canhoto, abrenúncio, o filme não tem nada de religioso, nem de comprometido com a ideologia ou sistema, puro como Deus o deu ao mundo. O que é, desde logo, outra das suas intransponíveis dificuldades propostas ao crítico aflito que o queira analisar.
Depurado se poderá dizer também que ele é, rejeitando «a priori» concessões e facilidades, quer ao gosto estereotipado do público quer às estéticas de consumo em vigor no mercado. «Rosa de Areia» vai-se naturalmente destilando, até não se parecer com nenhum outro produto fílmico, com nenhum outro autor, ficando isolado num deserto de referências, numa atitude que alguns dirão «mística», mas que é apenas o método Zen de rarefazer o acessório para atingir o essencial na muge. Vistas bem as coisas e já que o filme ensina a ver, de místico e metafísico nada ele tem. É físico, o mais físico que há: o professor Baptista, militante, atómico cá do burgo, aparece como figurante a sair de uma aula de Física, que por sinal é o Observatório Astronómico da Ajuda. E como ele gosta de isótopos, este professor Tournesol!
António Reis, no breve debate pós-projecção, aludiu a uma das chaves do filme: optou-se por uma estética dos materiais. Ali, de facto, joga-se com os materiais mais duros e puros, desde a rocha granítica e basáltica, à areia (sempre areia), às palavras (como pedras), às cores, aos tecidos, aos ladrilhos, aos azulejos, à água, às palhas, ao vinho (do Porto!), ao mar das searas, ao oceano da terra, praticamente todas as texturas físicas ali comparecem.

Para ler verso a verso

Outros perguntarão: onde se passa o filme, em que época, em que lugar? E só há uma resposta, se resposta há: é de todos os tempos e de nenhum, é de todas as partes e de nenhuma parte. Leiam alguns textos do budismo primitivo e encontrarão lá, em glosa moderna do meu compadre José Matos-Cruz: «Vindo de algures, de nenhuma parte e indo para parte nenhuma».
Intemporal, então, o filme de Margarida Cordeiro e António Reis? De modo nenhum: a «durabilidade» ou efemeridade da condição humana ressalta ali com imensa e terrível violência. Então alguém dirá: é um filme de angústia existencial. Também serve.
E quanto ao espaço? Vem do princípio do mundo, como logo se percebe pelas urzes ainda tão frescas e aquele ar de montanha carregado de iões negativos. Só faltou a Margarida e António Reis irem filmar as furnas dos Açores, contemporâneas dos Atlantes.
A propósito: ouvi mal ou lá se diz que somos contemporâneos de tudo o que amamos? No entanto, a morte é ali soberana, um facto igualmente físico, um poder que ri dos poderes nucleares e outros que o homem soltou. A transmigração das almas, se existe, não impede que os corpos se dilacerem ao afastar-se e que a saudade seja um fenómeno tão físico e concreto como os demais. Pai e filha estão ali, à beira do túnel, para se despedirem, numa das imagens mais patéticas que o filme contém. Quem não chorar, é covarde.
Mesmo como pode haver dramatismo num poema zen que literalmente rejeita as «dramatis personae», a intriga, a história, a sequência, o suspense, enfim, aquele arsenal useiro de que se faz o cinema de consumo em geral e as séries televisivas em particular?
Talvez porque, recusando isso tudo, «Rosa de Areia» assume a responsabilidade de se autobastar fotograma a fotograma, sequência a sequência, plano a plano, todos com princípio, meio e fim, como se fossem filmes dentro do filme.
Quer dizer: se sincoparmos a visão deste filme, sequência por sequência, nada se altera da emoção recebida. Ao contrário de um policial, de uma história de aventuras, de um serial erótico-violento ou de qualquer outra pepineira de que está cheio o mercado da chamada «ficção», ao contrário disto tudo, um poema como «Rosa de Areia» é para ler verso a verso, estrofe a estrofe, de trás para diante e diante para trás, sem que nada disso altere uma vírgula da sua densidade significante.
Vasco Granja, que também «animou» o debate, lá foi falando de poesia, enquanto António Ramos Rosa, do outro lado da sala, mantinha o silêncio poético da sua natureza silenciosa.
O filme auto-sustenta-se fotograma a fotograma, sem muletas de espécie nenhuma: penso ser este o elogio a fazer-lhe, se é que há elogios para um filme que tudo recusa, incluindo os piropos – ou desagrados da crítica.
Uma Liga de Amigos do cinema poético, como disse Carlos Porto, também na assistência? Acho que não, Carlos: cada cidade, cada país e cada povo tem, no fim de contas, os Batman que merece. E se nós não merecemos a obra de Margarida Cordeiro e António Reis, o mal é nosso, não é deles, e o prejuízo é do País. Nós, como deficientes mentais, é que precisamos de uma Liga de Amigos. Não andamos nós, Carlos Porto, há mais de 30 anos, à espera de que um editor neo-realista nos edite? E, no entanto, ainda não morremos. Margarida e Reis também vão aguentar o silêncio, descansa.

A pista de obstáculos

Cada cidade tem as vereações e presidências que merece e nós, alfacinhas, merecemos esta latrina de tapumes, buracos e esterco, que é hoje Lisboa, tudo se passando, também, na cumplicidade do silêncio. Nunca a Cinemateca me pareceu tanto uma ilha rodeada de todos os lados, como, no sábado passado, para ir até à qual (ilha), ver «Rosa de Areia», se tem de atravessar uma pista de obstáculos intransponíveis. Lisboa é toda ela, neste momento, um pesadelo, que vai atropelando gente como num açougue.
E, no entanto, as pessoas lá estavam, a horas, antes das 11, como se vivêssemos numa cidade a sério, num país a sério e fôssemos um povo a sério. Como queremos nós merecer a obra de Margarida Cordeiro e António Reis? Vamos deixar «Rosa de Areia» sem exibidor, tal como deixámos degradar uma cidade, um país e um povo ao ponto a que nós deixámos, sem um miado dos multimédia rastejantes. Que sentido fazem, Carlos Porto, as ligas de Amigos e de protecção à Natureza?
Os exibidores andam distraídos, coitados, com outras folias? Deixá-los andar, também não lhes ensinaram outra coisa. O Estado arreda-se da sua obrigação mecenática, deixando ao desamparo os Fellini, Buñuel ou Rosselini que por aqui forem nascendo? Deixar o Estado, coitado, para infelicidade já lhes basta ser quem é: um agregado de suinicultores, gerido por halterofilistas do Fisco. O público, ainda mais infeliz do que o Estado, não tem olhos para ver? Mas tem, coitado, as greves que as centrais sindicais decretam contra ele, o que é, desde logo e só por si, fonte de manifesta alegria e justiça social.
Quanto ao Instituto Português de Cinema, que não financiou esta obra, é outro nado-morto, o infeliz: paz também à sua alma e que repouse em paz, financiando até à eternidade as fitas do eterno Manuel de Oliveira.
A propósito de bichas por causa das greves: Sabendo-se que «Rosa de Areia» recusa também tudo o que cheira a símbolo, metáfora ou alegoria, porque há tantos seres rastejantes ali, até uma cobra, literalmente falando? Quererão os autores explicar se foi por acaso? E porque gostam eles tanto de filmar as pessoas de costas, tal como Bresson, por exemplo, com toda a ternura do mundo, gostava de filmar os pés?

Tempestade no deserto

A propósito de Bresson: o filme recusa qualquer filiação, ascendência ou paternidade de outros autores. Também aí, «ex-niilo». Também aí, auto-suficiente. Também aí, alfa e ómega de si mesmo, o que atrapalha ainda mais os pobres dos críticos, sexualmente impotentes para fazerem belíssimas exegeses com base nas influências de Jean Rouch, Godard, Antonioni, Manuel de Oliveira, Straub, Fernão Mendes Pinto.
É que não há nada, por mais que esgravatem na terra dura. A propósito de terra, não gostei de duas imagens demasiado elaboradas, onde o material deixa de surgir em bruto. É a rocha com sinais de dinamite, ao lado da qual se filma a linda imagem da mulher «dormindo» num leito de papoilas e um outro artifício que eu pergunto, de imediato, aos autores: no palheiro, onde entram, oblíquos, os raios de sol, confessem lá, vocês puseram um holofote laranja para evidenciarem aquele olho de água crescendo? Foi ou não?
Ora um artifício de produção é algo que me parece deslocado num poema onde, contra o que parece, nada é artefacto, tudo é facto.
A meter-se pelos olhos dentro, como uma tempestade de areia no deserto.

LÁ FORA É QUE É BOM

Embora não tivesse entrado com um tostão para o filme «Rosa de Areia», o Instituto Português do Cinema não se cansa de o mostrar em todos os pontos do mundo onde é necessário manter bem viva a presença e o prestígio de Portugal como país da CEE.
Depois de ter sido incluído na Semana do Cinema Português, em Paris, no passado mês de Setembro, vai em Outubro à Flandres e em Novembro ao Canadá.
Quanto à obra completa de Margarida Cordeiro e António Reis – que inclui, como se sabe, «Jaime», «Trás-os-Montes», «Ana» e «Rosa de Areia» – a Cinemateca da Suiça acaba de comprá-la, na íntegra, e a Cinemateca Portuguesa tem programada para o início de 1990 a retrospectiva desta obra ímpar do cinema português.

Texto de Afonso Cautela – jornal A Capital, pág. 27, Quarta-feira, 11 de Outubro de 1989.