sábado, setembro 04, 2004

010. "TRÁS-OS-MONTES" na inauguração da sala da Cinemateca

Em Julho / Agosto de 1980, um conjunto de 67 filmes portugueses, situados entre "Os Crimes de Diogo Alves" de João Tavares e "Manhã Submersa" de Lauro António, inauguraram a sala de Lisboa da Cinemateca Portuguesa, sendo secretário de Estado da Cultura Vasco Pulido Valente e Director da Cinemateca o saudoso Dr. Manuel Félix Ribeiro.
"Trás-os-Montes" foi um dos filmes seleccionados.
A "folha" da Cinemateca sobre "Trás-os-Montes" e publicada no catálogo diz o seguinte:

"Evocação de uma província portuguesa, o Nordeste, onde as raízes históricas seculares se confundem com as do país irmão que o Douro une.
As crianças, as mães, as mulheres, os velhos, a casa, a terra...
A vida de cada dia, o imaginário, as tarefas prestes a desaparecer, a agricultura de subsistência...
A erosão.
O tempo e a distância.
A presença dos ausentes, de todos os que partiram em direcção a outros horizontes.
Um poema inspirado por Trás-os-Montes, interpretado pelos seus habitantes.

UMA SÍNTESE AMBICIOSA

Em relação a «Trás-os-Montes», e do ponto de vista de realizador, parece-me de sublinhar até que ponto um público comum estará preparado para receber este filme numa exibição normal, visto que ele conduz, quase necessariamente, a um debate sobre o que é cultura popular e um cinema não narrativo.
Outro aspecto, importante, deve-se à qualidade humana e ao amor com que António Reis e Margarida Martins Cordeiro se dedicaram ao levantamenteo de uma região, sendo, talvez, das primeiras vezes na história do cinema português que um filme estabelece uma síntese dialéctica ambiciosa quanto ao que os sociólogos chamam de «cultura popular»... A quantidade de interrogações que o filme põe ao espectador mais avisado.
Por sua vez, isto dá a «Trás-os-Montes», de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, uma posição muito forte e muito original na tentativa de encontrar - coisa que se está a passar um pouco por todo o mundo - um cinema aberto, portanto um cinema que questiona as próprias formas da linguagem cinematográfica, e mesmo as noções de cinema de ficção, cinema de comunicação, por exemplo, para as fundir num todo global.
Penso que um trabalho dotado de tais características terá, sempre, dificuldades com o público; por isso, filmes como «Trás-os-Montes» não há muitos por toda a parte, e os poucos que existem são, normalmente, escamoteados dos circuitos normais de exibição.
Que «Trás-os-Montes» tenha conseguido passar em Lisboa, mesmo numa sala de estúdio, e mesmo às sete da tarde é, apesar de tudo, uma vitória que, no entanto, só terá sentido se o público fizer um esforço para acompanhar a obra, que é daquelas que tendem, como todas as grandes do cinema, a criar um novo tipo de espectador.

Fernando Lopes

UM FRESCO EVOCATÓRIO

«Trás-os-Montes» é essencialmente documental, embora corresponda a uma visão muito peculiar dos seus autores. Pode dizer-se que insere vários níveis duma memória algo desencantada, que penetra no quotidiano, e reconstituição fantástica de certos pormenores da história e tradição.
Trata-se, melhor, dum fresco ao mesmo tempo crítico e evocatório, que apela para a sensibilidade do espectador, ao mesmo tempo que lhe suscita um assumir de consciência. Salienta-se, principalmente, o grande vigor da imagem, o que ela transmite e sugestiona: as próprias «ausências» têm um indesmentível cariz significante.
Assim, Trás-os-Montes como país despovoado - a desoladora realidade do esvair emigratório, ou como território localizado nos confins - logo, longe da atenção dos governos «centrais»... Mas o filme colhe igualmente e transmite-nos toda a ressonância cultural genuína e de alta dignidade, bem como a força generosa e o carácter indomável dos seus naturais.

José de Matos-Cruz

UM PARALELO

«Trás-os-Montes», o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, tem pouco a ver com o mais recente cinema português. É às vezes documento, às vezes não; também não conta rigorosamente uma história; joga, em aparência, na indefinição, ou na hibridez, se se quiser. Creio que, ao fim de quase duas horas de projecção, o espectador desprevenido domina mal a espécie de envoûtement tentada pelos autores. Confuso, dirá: «É giro». Irritado talvez: «Está bem, mas gosto de outras coisas» (o guião, o plot).
«Trás-os-Montes» pode ser visto preferentemente como uma apologia, uma denúncia (e já foi visto dessas duas formas diferentes); como o produto da oposição campo-cidade (idem); como um exercício da memória privilegiada (idem, sempre). Digamos que os autores propõem, propuseram uma obra aberta. Disso falou, por outras palavras o realizador francês Jean Rouch, a primeira voz estrangeira a propagandear o filme.
Leitura entre leituras, a minha socorre-se do que sei sobre as tendências da poesia novíssima que por cá se faz. Vamos então. Parece-me de inscrever «Trás-os-Montes» na malha complexa de que se tece o novo discurso (entendido no plural), guardadas as convenientes distâncias. Já se reparou que o conceito de antiepopeia, trazido por Luísa Neto Jorge com os «Dezanove Recantos», e alargado depois por Gastão Cruz a outras poéticas últimas, está presente até à obsessão no filme de António Reis-Margarida Cordeiro? É que neste há um reequilíbrio contínuo entre o rigor escasso pós-«Poesia 61» e os grandes planejamentos metafóricos que vão de um Humberto Hélder a um Nuno Júdice, passando pelo João Pedro Grabato Dias, de Moçambique? E que a carga de citações tem a servi-la a maestria diluente dum jogo Miguel Ferandes Jorge, dum António Franco-Alexandre? Enfim, que «Trás-os-Montes» se interroga contínua, apaixonadamente sobre a linguagem, herdada em estado de exaustão, contaminada de retórica fruste?
Susteria aqui o paralelo. Um dos autores do filme, António Reis, revelou-se como poeta em finais dos anos 50 («Poemas Quotidiano», depois «Novos Poemas Quotidianos»), e eis também o que eu queria referenciar - que «Trás-os-Montes», sendo cinema, não podendo ser senão a pungência do cinema, é ao mesmo tempo o desenvolvimento de uma poética. Na parte egoística que me toca, espero doravante o António Reis lírico

F. Assis Pacheco


José de Matos-Cruz - Panorama do Cinema Português, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1980